Ilda Maria Costa Brasil, Celeiro da Alma

"Sonhar é acordar-se para dentro." Mario Quintana

Textos


 

A RÉGUA

 

Ano 2000. As mudanças climáticas estão chegando. Ano 2010. As mudanças climáticas estão chegando. Ano 2024. As mudanças climáticas estão chegando. Correção. As mudanças climáticas chegaram e me alcançaram na sala de estar de minha casa.

No dia 06 de maio de 2024 numa inédita subida da Lagoa dos Patos decorrente de um dilúvio nas bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul tornou realidade o alerta dos cientistas sobre as mudanças climáticas no planeta que ecoavam desde a conferência mundial do clima em 1972 na cidade de Estocolmo.

E, subitamente estes alertas se materializaram em água debaixo do meu teto, numa velocidade incrível, que nos obrigou a erguer móveis, salvar eletrodomésticos, roupas, e tudo mais que fosse possível. E este possível foi muito pouco, pois menos de uma hora a casa estava abandonada, minha família, um gato e eu dentro de um carro parecido como uma mudança cigana. Estacionados na via pública nos perguntávamos: E agora para onde vamos?

Dali foi uma jornada itinerante entre hotel e a casa de um amigo. Aturdido. Meio desorientado e vivendo numa espécie de limbo. Pois tinha uma casa, mas ao mesmo tempo não tinha. Passava a viver sob o teto alheio concedido pela fraternidade de um amigo. E, o tempo se escoava assistindo noticiários dramáticos, informes de que as águas subiam, que as chuvas vinham como “rios aéreos” sobre o Estado, vizinhos que me contavam como estava a situação na minha quadra e o tempo parecia indicar que ele estava em suspenso. Que o Universo – pelo menos o meu – existia em razão as águas.

        Então, a Defesa Civil anunciou que diariamente informaria sobe as medições do nível da Lagoa a partir de uma régua. E dai em diante nos horários previstos lá eu estava querendo saber sobre o nível. E as notícias vinham. A água subiu dez centímetros. No outro dia, aumentou mais dez centímetros. E noutro ainda, baixou cinco centímetros. Uma brisa de ânimo, logo desfeita pela medida do dia seguinte, a Lagoa tornou a subir.

Neste compasso batia o coração. Ora a desejada volta para casa parecia próxima, ora parecia longe, as vezes, com um gosto de nunca mais.

E assim seguiam os dias. De repente, uma notícia, vai soprar o Nordeste, este vento esvazia a Lagoa pela Barra do Rio Grande, outro dia, soprava o Sudoeste, que represava a Lagoa, e lá se iam embora as esperanças de uma baixa.

Dia e noite meus pensamentos estavam naquela estaca pintada de branco pintada as escalas em preto e cravada no fundo da Lagoa dos Patos.  Chegava imaginá-la ali solitária, fustigada pelas ondas, vergastada pelos ventos, sob o sol e chuva, bruma e frio. E recebendo a visita silenciosa de homens que diariamente anotavam a água em suas escalas. Lá naquela régua estavam as minhas esperanças. Se baixasse era menos tempo de água dentro minha casa, dissolvendo cola, descolando placas de madeira, deteriorando roupas, livros, móveis... tudo.

Então quase ao cabo de trinta dias vivendo este Suplício de Tântalo, a tão esperada notícia. A Lagoa dos Patos está baixando consistentemente. A baixa é irreversível. E desta forma, após a folhinha de maio sair do calendário e a de junho estar reinando, finalmente pisei na minha casa.

O cenário somente poderia ser comparável ao naufrágio de um navio. Vou poupar os leitores dos detalhes da destruição que começou na biblioteca e acabou no ultimo quarto da garagem.

Ali contemplando aquilo que um dia tinha valor para mim, tive o que se pode chamar de epifania. Nada tinha valor. O valor era eu que emprestava as coisas. Entendi que o valor está na vida, nas amizades, no intelecto e na bondade.

As águas levaram o que tinha de ser levado e deixou o que entendeu que ainda podia ficar.

Todos aqueles dias que pautei minhas esperanças por uma régua pensei: Por acaso não  é assim que também se pauta a existência? Não é pelo esquadro, pelo compasso, pelo nível, pelo prumo, que se delineia o existir? Não é nas medidas de uma régua mística que se medem os passos e os rumos do viver?

Embalado nestes pensamentos, ainda na qualidade de refugiado climático – este termo ainda será muito usado no futuro da humanidade – que me ergo novamente para dar sentido a vida e continuidade a minhas ideias, buscando novas forças em um plano espiritual, que me permitam continuar fazendo o que sei e o que posso, inclusive, escrevendo estas palavras sobre minha experiência com as forças da Natureza, que nunca estiveram em meus mais ousados pensamentos,

Aprendi que temos de firmar um pacto com a Natureza. Que não somos os senhores da Terra. Que tudo e todos que estão neste planeta têm um propósito. E nós temos que aproveitar estas experiências para extrairmos delas o melhor de nós, e, sobretudo para fazermos a vida dos outros melhor. Fora isto me parece ter pouco ou nenhum sentido a Vida.

Jairo Scholl Costa - Membro da Academia de Artes e Ciências e Letras Castro Alves - Porto Alegre/RS.
Enviado por Ilda Maria Costa Brasil em 31/01/2025
Alterado em 31/01/2025
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