Ilda Maria Costa Brasil, Celeiro da Alma

"Sonhar é acordar-se para dentro." Mario Quintana

Textos



SINGULARIZAÇÃO – DISPOSITIVO LITERÁRIO USADO POR TOLSTOI.

Até aquele dia, eu havia compreendido a necessidade dos humanos de se tornarem escravos de vícios, independente da natureza a partir da qual foram criados. Eles têm essa mania, não têm? De acreditar que, ao dar significado às coisas, a vida pode se tornar mais bela e plena. Já havia visto isso acontecer do mais adulto e sábio à criança mais inocente e sorridente, e, mesmo assim, ainda não entendi a real relevância do caso.
Entretanto, acostumado a observar todos os movimentos sutis destes que chamo donos, dentre todas as obsessões que eu já havia presenciado, aquele pertence que carregavam consigo diariamente era uma incógnita para mim. Já havia tentando cheirar, lamber, olhar, mas nada do que meus sentidos captaram era suficiente para formar uma noção completa da importância daquele objeto. De fato, os humanos agiam como se aquilo fosse parte de seu corpo, um membro essencial que, caso amputado, representaria uma desgraça tremenda. Às vezes, eu tinha quase certeza de que eles tinham mais consideração por aquele pedaço retangular do que por mim.
Geralmente, deitado no meu canto, um dos meus donos vinha com aquele objeto e o enfiava na minha frente. De início, me atrevia a tentar descobrir esse mistério. Talvez nem mesmo o humano soubesse o que era e me estava incumbindo a tarefa de desvendá-lo! Depois de tantas repetições e percebendo que pouco importava a ele o que eu achava, comecei a tratá-lo com indiferença. O que eles queriam com aquilo no meu focinho que eu já não tivesse feito? Era pra cheirar de novo? Pra morder? Pra arranhar? Em uma das minhas tentativas de descoberta, ameacei morder o tal objeto e o humano me xingou como se eu o estivesse atacando. Realmente, esses vícios acabam com qualquer graça e, às vezes, com todas as forças que uso para manter a cabeça erguida na hora da janta.
O mais engraçado é que eles conversavam com aquele negócio! Da mesma forma que falavam comigo como se eu fosse uma criança, eles discursavam por horas naquele troço inanimado, sobre os mais variados assuntos (às vezes até o xingavam, e esses eram os poucos momentos em que eu me sentia feliz na presença daquilo). Não bastassem as conversas intermináveis naquela coisa, ela ainda fazia barulhos infernais! Por conta própria! Como um da minha espécie, quando aquele objeto chamava, os humanos saíam correndo — adestrados, desesperados e obcecados —  à sua procura. São eles os que esquecem o que estão fazendo para responder a um chamado gritante, e depois nós que somos os bobos que correm atrás de ossos...
Marina Solé Pagot – 19 anos
Enviado por Ilda Maria Costa Brasil em 14/07/2021
Alterado em 14/07/2021
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