ECDISE HUMANA O verão decidira não perdoar quem aqui na Terra estava e, enquanto eu me sentava à janela, raios de sol faziam suor deslizar pelas minhas têmporas. Tinha quase certeza de que, se caísse naquele instante, minhas asas, mesmo que pequenas, conseguiriam me aguentar. Não lembrava o porquê de permanecer à beira da morte – talvez o cheiro suave das flores no gramado fizesse o perigo levemente menos assustador. Tentei enxergar-me no reflexo azul do céu: peso demais nos ombros, buracos negros tomando conta dos olhos, uma mandíbula capaz de quebrar nozes. A lábia tão doce e encantadora quanto o mel e tão tóxica e imprevisível quanto uma ferroada. Sentia a língua dançando em minha boca ao saborear cada palavra falada. As feridas que coloriam os nós dos dedos amarelados em tons de vermelho e roxo deixavam claro que as três partes de sua alma não estavam em harmonia – Platão não estaria nem um pouco orgulhoso. O que tem de errado contigo? Meu coração batia de modo pungente contra as costelas na mesma cadência da pressão que se espalhava pela minha testa. Mergulhei o rosto nas mãos, implorando que alguma cura divina fosse trazida pelo vento. O sol parecia querer conversar com alguém antes de ir dormir, e talvez eu fosse a única pessoa estúpida o suficiente para perder meu precioso tempo de ócio tentando entender um astro. – O que foi? Tu não deve ter muito problema... Constantemente brilhando, até quando a gente não vê. O centro do sistema solar. Deve ser bom estar na tua posição, não é? Pra que querer mudar teu rumo se já se endireitaram tudo numas órbitas ao teu redor? Tudo que tu tem que fazer é continuar radiante. Não deve ser muito difícil enquanto tu te sentas num trono de estrelas... A insanidade começava a consumir o pouco que restava de mim e eu me deixava levar – porque minhas palavras eram persuasivas o suficiente para tornar todos meus outros pensamentos suscetíveis ao que a pulsação contínua me exigia. Cada tique do relógio acompanhava minha falta de ar e cada taque tornava mais complicado controlar minha ansiedade inevitável. As palmas tornavam-se escorregadias e meus lábios secos a ponto de rachar. Respira, pelo amor de Deus. Mas como seria possível respirar se em meus pulmões brotavam pequenas corolas de rosas encravadas por espinhos em cada alvéolo. O dia já brincava de esconde-esconde e o que me restava para admirar era um céu cor sangue, uma companhia inútil para prosseguir com meu monólogo. Um vento mais gelado rasgava obstáculos que o impedissem de arrepiar todo meu corpo. Nem a natureza parecia se sentir confortável comigo. Joguei minhas pernas para dentro do quarto e pousei sem qualquer dignidade. Uma figura deprimente me encarava, seus olhos injetados de cansaço julgavam se eu merecia algum respeito. O reflexo queria chorar. Mordi a língua com força e não me permiti a vulnerabilidade. O gosto de sangue acre e podre vibrava em minha boca. Meu punho tentava derrotar a constante dor de cabeça com baques que soavam como metrônomos para as minhas palavras. euteodeioeuteodeioeuteodeioeuteodeio Eu queria poder perfurar meu cérebro e arrancar o nervo ou vaso sanguíneo que não me deixava em paz. euteodeioeuteodeioeuteodeioeuteodeio Quanto mais eu teria que continuar pra me livrar desse demônio corroendo cada pedacinho que ainda restava do que eu me acostumei a chamar de “eu”? Aquele momento entre dúvida e mínima certeza, entre não saber mais o que eu era e entender o que eu queria ser, foi suficiente. A pólvora começava a esquentar em minha mente. Caráter... o que é isso? É tipo um exoesqueleto. Tá, e o que é um exoesqueleto? O esqueleto externo de certos animais: abelhas, formigas, besouros, escorpiões, lagostas. E o que isso tem a ver com caráter? Quando o animal cresce a certo ponto, ele realiza uma troca para não limitar seu crescimento. Ele abandona seu exoesqueleto e começa a formar um novo, próprio para seu tamanho. Assim o faz, até o fim de sua vida. Minha memória puxou o gatilho de uma vez, a bala rasgando-me de ponta a ponta. Senti as lágrimas escorrendo como lava pelos meus olhos. Doía. “Tornar-se” era um processo doloroso. Minha garganta queimava com um uivo persistente. Um tsunami lavava cada canto dentro de mim enquanto minhas unhas e meu choro levavam consigo a casca entrelaçada às minhas células. Sentia-me renascer – uma Tábula Rasa arremessada contra mãos com tintas e pincéis. Oxigênio revestiu meu interior e eu abri os olhos. Pela primeira vez em muito tempo minhas pupilas sorriam. As feridas nos dedos haviam sumido, a cor iluminava minha pele, os ombros finalmente retos. A dor de cabeça havia se transformado em silêncio. Ao olhar o meu exoesqueleto, às minhas costas, eu não me sentia outro ser. O reflexo colorido ainda era eu. Era a parte de mim que, presa em uma cela de vinhas, eu nunca havia permitido florescer. Marina Solé Pagot – 17 anos
Enviado por Ilda Maria Costa Brasil em 11/02/2020
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